terça-feira, 8 de dezembro de 2020

fantasmas familiares

    Foi num fim de tarde. 07 de julho de um ano qualquer. O meu pai chegou de algum lugar, arreou o cavalo, montou e partiu. Eu estava na janela e vi quando ele, num galope lento, sumiu na curva que ficava um pouco além da nossa casa.

    Foi também num fim de tarde. 07 de julho ou agosto, não me lembro bem, do ano seguinte. O meu irmão mais velho chegou do trabalho (era amansador de cavalo), colocou umas peças de roupas numa velha mochila, a mãe estava retirando roupas do varal, ele foi até ela, olhou-a por um instante, quieto, de modo tímido beijou-a, virou as costas e saiu pela porta da frente com passos apressados; do velho portão de madeira, virou e levantou a mão pra mim, que estava à janela. Acenei pra ele também, e o vi dobrar a curva da estrada que ficava um pouco à frente. Começava a escurecer e, pros lados do rio, já era possível ouvir os cantos dos primeiros pássaros noturnos.

    Mais uma vez foi quando anoitecia. A nossa única irmã não chegou em casa como sempre fazia ao retornar do rio onde ia lavar roupas. Fui, mandado pela mãe, ao seu encontro, à procura no rio. Encontrei velhas roupas penduradas em algum galho de arbustos na margem do rio. E só. Mais tarde soubemos por um passante que uma moça fora vista numa velha barcaça que sempre descia o rio naquela época do ano. Era ela.

    Por essa época a minha mãe, quando chegava a tarde, costumava vir se postar comigo à janela e, juntos, sem dizer nada, ficávamos a olhar a estrada quieta, silenciosa e vazia que se perdia um pouco além, na curva.

    Meus outros dois irmãos, um que estudava num colégio interno lá na Capital e um outro que sonhava em ser maquinista, às vezes davam notícia. O maquinista, quer dizer, o que sonhava ser maquinista passava semanas inteiras na decrépita estação de trem que tinha sido desativada. Ele dormia, soubemos, numa velha carcaça de trem abandonada há alguns anos no pátio da estação. Vivia de doações de comida de pessoas que viviam nos arredores. O outro, o interno, nos mandava, uma ou duas vezes ao ano, cartas em que dizia que se tornaria padre e retornaria para a região. Nunca voltou. Um dia as cartas pararam de chegar.

    Minha mãe morreu alguns anos depois. Apareceram no velório alguns conhecidos da cidade, pessoas da vivência do meu pai e algumas senhoras já bem alquebradas, boas senhoras já avançadas na idade que prepararam café e bolos e assim tudo transcorreu "normalmente"; meu irmão maquinista tão de repente surgiu como desapareceu, não disse uma palavra a ninguém, quando fui procurá-lo, já tinha sumido; dizem que carregava um quepe estranho na cabeça; do meu outro irmão "padre" recebi uma carta, melhor dizendo, um bilhete onde alegava que não poderia vir por estar em uma experiência de reclusão ou coisa assim. Tudo bem.

    Logo depois resolvi sair do sítio e ir para a cidade. Também resolvi que não o venderia por enquanto; apenas peguei minha mala, coloquei algumas coisas que achei que precisaria e fui. 

    De tempos em tempos voltava lá e percebia o mato e as ruínas tomando conta de tudo: o velho curral, um pequeno barracão onde meu pai guardava de tudo, ferramentas, mantimentos com sacos de milho, de arroz, farinha de mandioca, enfim, uma despensa como se conhece esse tipo de lugar.

    Os anos foram passando e não me decidia o que fazer com aquilo, vender, arrendar, sei lá, qualquer coisa.

    Parei de ir lá quando, num certo ano, ao ir lá, apareci na cidade e notei um jeito estranho no modo como alguns antigos conhecidos, meus e do meu pai, falavam comigo. Como se quisessem me dizer alguma coisa e não tivessem como contar, pois bem, fui até o sítio e tudo continuava igual, apenas mais corroído, a casa continuava de pé apesar do telhado ter desabado em alguns cantos. O mato tomava conta de tudo. No dia que ia retornar à cidade (eu morava agora na Capital) um senhor amigo do meu pai me chamou para um café antes de eu chegar à rodoviária e me contou.

    Este senhor, já beirando os noventa anos, me disse que não queriam me contar, mas corria na cidade o boato que muita gente jurava que lá no sítio tinham visto uma senhora e um rapaz na janela, e que o rapaz era eu, sendo a senhora, a minha mãe. Fiquei espantado. Não entendi. Ele repetiu que ainda no mês anterior, (era setembro naquela última vez em que lá estive), um casal de férias que vagava pelos arredores afirmou na cidade ter visto uma mulher estendendo roupas num varal, deu a descrição do lugar, mas que quando se aproximaram ficaram confusos, pois perceberam a situação do casa e também que não havia nem varal de roupas, nem mulher nem nada, mas juravam ter visto.

    Despedi-me daquele senhor que me disse ainda que o povo falava muita coisa, inventava, coisas assim e tal, disse-lhe que tudo bem, agradeci e tomei o meu ônibus com muitos pensamentos na cabeça, na verdade, não sabia o que pensar.

    Há muitos anos que não mais retornei lá. Talvez volte um dia. Talvez não. Dos meus irmãos não mais tive notícias. Gostaria de vê-los ainda uma vez antes de tomar o último trem. Não sei. 


















quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sobre a mulher num campo de girassóis




      Apesar de desperta, a mente vaga por caminhos oníricos... 
      o corpo precisa de repouso, mas as imagens insistem em chegar e estas imagens remetem a tempos outros.
      " imagens cortadas durante lapsos de sono"
      naturalmente bela é uma fêmea, uma ninfa, uma mulher, num campo de girassóis e,  deveria ser  feliz aquele que concebe e se envolve numa visão tão torturantemente rara.
     o homem, sombrio,  desamparado, circunspecto, pode apenas observar, à distância, a mulher abraçada à árvore, como quem busca um porto seguro.
      o homem, no seu precário poder de conquista, sente que tem que renunciar, e isso dói. Ele sente que está só. Ele sempre foi, é, e sempre será só, trilhando, absôrto nos próprios pensares, ruas de calendário...
      Há contradições várias, no relato, no sentir, no imaginar, mas é certo, também, que a própria vida é prenhe de contradições.



      "depois disso acordei"
      mas ele não estava insone???

     "pureza e verdade"

      Isso é o que ele vê, na sua ânsia de aprisionar o que já não é pássaro, mas, imensidão, medo e esquecimento.

      "entre um copo e outro, olhei-me no espelho"
    

      Quem ele vê? Quem ele quer ver?!
      
      Esta embriaguez não provém de copos e copos, da música à distância de um poeta pop. Mas, talvez sim, tenha uma origem de outra natureza, de uma fonte mais profunda, quando o homem, amortalhado, tenta alçar voô e sente que lhe serraram as asas.
      
      o homem, Durelli, ao descalçar suas botinas com tacões de aço, deixa entrever que quer andar mais leve.
      Talvez venha a perceber, um dia, que se secular é a árvore a qual abraça a mulher, fugaz é a lembrança e perene é o desejo.



oz
07.05.2020
{ sobre um texto de um amigo }

sexta-feira, 27 de março de 2020

De um convite (ou CEU 3)





"Não é tão fácil a gente tornar-se o que se é, reencontrar sua medida profunda
C."

Amigos de priscas eras
de tempos de bonança
de tempos abissais
de outras esferas
não esperem de mim
o verbo perfeito.
odes sagradas
pois pouco tenho
ou quase nada, enfim.

(...)

O tempo flui 
o tempo é agora, quando os nossos passos 
ressoam na noite silenciosa, antes lépidos, agora vagarosos.

(...)

A mente vaga em paisagens grises
e a marola ainda paira (do quarto do Romer)
em muitos narizes.
Nas fendas das paredes do Palácio do Tempo
brotam vírus letais
versos, cantos, desencantos
crianças
mentes desiguais.
Ante um tempo a que chamamos Século 21
nós, que fomos tantos
e sonhamos tanto com tantos caminhos
nós, que SOMOS tantos
nós, que FOMOS tantos
um só grupo, um bando
será que podemos ainda ser UM ??


Oz
27.03.2020

sábado, 4 de janeiro de 2020

da colheita

      



      A cada um cabe descobrir os efeitos que podem causar os frutos gerados pelas sementes que tem nas mãos, mas como é difícil.

     Numa certa manhã, a três camponeses foi dada a tarefa de semear um campo cujo tamanho lhes era desconhecido. A cada um coube duas mãos cheias de sementes também desconhecidas. Apenas lhes foi dito que, numa mão as sementes tinham efeitos nocivos, deletérios, venenosos, e, na outra mão, boas sementes, balsâmicas, salutares, morangos e umbus. A despeito da indecisão, surpresa, e um pouco de medo que sentiam, puseram-se a semear. Ora com uma mão, ora com a outra. No início, o trabalho foi feito de modo inconsequente, alegre, quase irresponsável; mas, à medida, que começavam a surgir os primeiros brotos, à medida que se distanciavam das margens do campo, ao olhar para trás, começavam a se dar conta de que, atrás deles se formava um pequeno grupo, que se tornava com o passar do tempo uma pequena multidão; perceberam também que algumas daquelas pessoas colhiam os primeiros frutos daqueles primeiras árvores que haviam surgido da sua semeadura, e também que assim que comiam aqueles frutos uns se mostravam mais alegres, robustos, alguns radiantes enquanto que outros se debilitavam, se tornavam irritáveis e tombavam ao solo. Aquilo os assustou e, olhando as próprias mãos, cheias de semente, já não sabiam mais qual árvore viera de qual mão e até porque eles mesmos se alimentavam dos frutos daqueles árvores.

(...)

      Com o passar do tempo as sementes se misturavam e agora já não era tão fácil saber qual semente de qual mão gerava qual fruto. Certo era que precisavam continuar o plantio. Era a tarefa a ser cumprida.
      E desde então, (essa semeadura teve início já há um bom tempo) mesmo tendo apenas uma vaga noção da qualidade de cada semente que lhe vai nas mãos, pois estão misturadas, eles, estes camponeses, continuam a semear, sabem que não podem parar, essa é a sua tarefa. Cabe-lhes semear e aguardar os resultados dos efeitos dos frutos que surgirão daquele imenso pomar que se formou atrás e em torno de cada um.