sábado, 4 de maio de 2013

Notícias para um amigo interno




Estou vivo e vida é chuva que não cessa
caça acuada que luta, que resiste
um corpo que, mesmo sob a rocha, insiste
em se mover, em adentrar a festa.

A vida é festa, viver é estar presente
o abismo que atrai o corpo em livre queda
o boi que o parasita em si hospeda
Viver !!! de lucidez é estar demente.

Não sei ! e isto basta por enquanto
e, sem saber, persigo a tempestade
em cada olhar, no eterno do momento;

& vejo em ti, no teu viver corsário e santo
um lago onde pousa a lealdade.
viver talvez seja cortejar o esquecimento...

Oz
Dezembro de 1997

Dell mio sinistro




Devia estar sempre à espreita ou quase
devia sempre ser um passageiro
mas creio ter sido um dia um timoneiro
no meio desta estranha tempestade.

mas o meu beco é sempre sem saída

meu olho esquerdo está sempre de férias
mas vê que em meio ao luxo há misérias
e em meio a tantas mortes ainda há vida

avesso ao tempo labutando a lida

mirando a vida destoante de tudo
as pernas curtas a estrada comprida
canto soluço e permaneço mudo

o meu boteco está sempre fechado

e o meu peito já não tem guarida

o meu cabelo está sempre espetado

e o meu beco é sempre sem saída

as minhas mãos estão sempre à espera

braços um tanto abertos, espantalho 
os meus pés sempre buscando um atalho
meu peito inflado de tantas quimeras

E se amanhã eu estiver dormindo

olho esquerdo e direito fechados
e aparente eu estiver parado
é puro blefe, estarei partindo.


Oz
Agosto de 2006

Camila




Camila é um pequeno pássaro
Camila é um pequeno peixe
Camila é um anjo terrestre

Camila voa
Camila nada
Camila flutua na minha tenda em farrapos.

Oz

Charlie, Clarice e os girassóis




                                                                                                " Sem endereço a alma acaba louca "1*


           E Charlie pensa: Onde andarás Clarice, que um dia, talvez numa madrugada insone fez ressurgir neste velho timoneiro a lembrança de uma terra distante ?
     
      Percorre um jardim decrépito, abandonado, da sua pequena aldeia e em cada banco surge a figura de uma fêmea que pensa ser ela mas quando se aproxima vê que não há ninguém era apenas outra miragem, então acende um outro cigarro.
     
    "mil vezes sem ti eu remo para mais adiante"2*
     
    Onde andarás Clarice ? seria ela um peixe que agora se esconde entre corais de alguma baia remota ? Um pássaro? às vezes no silencio da tarde Charlie sente próximo a ti um rufar de asas e logo pensa : minha mente se tornou uma nau desgovernada...
     
    De todo modo continua a percorrer um caminho incorrigível e tortuoso e mesmo só com seus antagonismos prossegue pensando ter Yeats e Plotino como amigos.
    
    Seu credo, seu verbo, seu chicote.
    
   Clarice o faz divagar e busca meios de se despir de uma fantasia de amor primária : uma mulher que o carregue envolto em lençóis lúcidos por um bosque de bétulas até a fonte sagrada de Aquárius onde ela encantadoramente cálida e triunfante e faminta assina com sangue um caderno de poemas de amor e medo.
    
   Charlie, Charlie Charlie...
     
   Que mistérios habitam o coração desse homem que vaga por uma vida febril e insone ?
     
   Clarice lhe ensinou que existe o amor e existe Thánatos, existe o ser e existe a esfinge. Ambos expulsos de Delfos...
     
  Clarice lhe guiou por labirintos de luzes e trevas, de reconhecimento e estranhamento, de turbulência e paz.
     
   È certo que os dias de encantamento ficaram para trás e ela agora é inquilina de uma senda imaginária...




Oz
Maio de 2013
00:35 hs

1*2*-PMCampos.






sexta-feira, 3 de maio de 2013

Vista de uma sacada




O pintor daltônico envolto em sombras lúdicas tateava na diáfana parede dos tempos em busca de quadros flutuantes em faces fáceis, no tecer preciso dos aracnídeos, no invisível voo das aves.

Seus olhos projetavam pinceladas e lembranças em depósitos de cinzas e outros arcanos.
Um coração indigente quase que inerte num salão repleto de pálidos fantasmas.

Agora está morto na sala deserta.

Deuses palhaços leves coloridos
pássaros de plástico, tariscas e mistérios
sobrevoavam lindamente o quadro surreal
e eu assistia a tudo pela janela aberta.

Sou o menino da rua 1104
aquele da sacada marginal
o único cúmplice de um viver incauto e belo.

Daria a minha manhã mais bonita
pela certeza de ter apenas sonhado que o criador de voos vadios recolheu os pincéis
e partiu em silencio...

Agora está morto na sala deserta...


Oz
Set. 94

* Fato presenciado pelo autor quando criança em B.H

brincares




Um berro ganhou a rua

partiu do escuro do quarto
quarto crescente da lua

Um abraço, depois eu parto


Um beijo oculto na sua

pele quente, odor de relva
animal livre na selva
tentação: sua alma nua.

Um jogo: o verbo solto

transformado em nosso fardo
jangada num mar revolto...

de repente o louco dardo

desnudou o corpo envolto
desde então em ti me ardo...


Oz
Outubro de 98

Pacto com ela




Quero abraçar o verbo que desnude a morte
e caminhar com ele aprendendo a viver
e com ele criar caminhos multiformes
nos primeiros raios o início do ser.

 beijar a face da passagem ao  desconhecido
soprar nos seus ouvidos segredos de outros sonhos
o voo rasante das gaivotas na pele do oceano
o espocar das bombas nos tímpanos urbanos

conhecer um dia de forma transparente
o encanto de estar em companhia constante
e, a cada olhar, eu possa por  instantes
sentir a existência qual fogueira ardente.

Ao copular com a morte acender os sentidos
provar que a mesma é mais que um sol se pondo
senti - la um fruto desnudo
ser devorado pela ânsia de viver
abraçar a morte como se abraça a vida
um novo sincretismo, um novo amanhecer.


Desmitificar a dor da despedida e , nas estações de embarque, no último adeus, deixar cair no solo sementes do seu riso.


Oz
31.01.1991