É novembro. Por razões que não vêm ao
caso, este pequeno relato é uma tentativa de manter viva (pelo menos por um
tempo) na memória dos protagonistas do mesmo, tudo (ou quase) o que ocorreu
durante a viagem.
Os fatos sem
(muitos) "cacos".
Na primeira etapa
de viagem, GYN/ BSB, Salamano cismou que, junto com eles vinha também no ônibus
a mãe das latrinas do hemisfério sul e isso ele notou logo que pisou no ônibus.
Raymond não percebeu, sentiu nada e chegou até a achar que estava com problemas
no olfato. Três horas e meia rodando por uma rodovia muito boa, duplicada, etc
e tal. Pequenas cidades tristonhas incrustadas no Planalto Central. Numa certa
altura, Raymond sentiu vontade de ir ao banheiro e só ali percebeu o que notara
o Salamano desde o início; um banheiro imundo, sem água, e que parecia estar
descolado da estrutura restante do veículo. Ele caiu fora dali rapidamente com
medo de que, junto com o banheiro, ficasse pelo caminho. No mais, sem
sobressaltos. Ceilândia, pequena parada. Raymond fuma um cigarro, (sabe que
precisava parar); logo depois, Taguatinga.
Durante a viagem,
Raymond comentava também sobre uma espécie de sentimento (que parecia comum
entre ambos) que se referia a estar de passagem por um pequena cidade, aldeia
ou mesmo um posto de gasolina no meio do nada e, ao ver ali pessoas nos seus
afazeres habituais, a gente se sentir tomado por uma espécie de solidariedade
ou coisa assim; ver alguém que entra por um pequeno beco, um menino soltando
uma pipa num campinho de terra ou um senhor que arrasta pelo cabresto um
burro teimoso ladeira abaixo, essas visões, enquanto você passa parecem lhe
dizer:
--- Ei, você vai, mas também deixa um
pouco de ti aqui conosco. Você vai e leva um pouco de nós, certamente. Talvez
ainda não saiba, mas ninguém passa impunemente por onde houver um semelhante
seu...
Isso o Salamano e o Raymond comentavam
enquanto o ônibus rodava no asfalto e a latrina matrona do mundo que se
escondia em algum canto embalava os passageiros sonolentos que partilhavam com
eles os confortos da Vitaperuna de apenas 2 eixos.
E o Salamano dizia
também ao Raymond que o seu tradicionalismo fora a causa de não explorarem uma
catedral decente.
Raymond disse:
vamos à forra no retorno.
***
Rodoviária de BSB,
Centro; uma estrutura melhor, maior, mas com um curioso inconveniente, pombos;
falar aqui de uma revoada não dá a real dimensão do problema. Os filhos da puta
não davam sossego. Enquanto lanchavam no Bob's tinham que ficar com um olho nos
pombos, para não terem os lanches roubados, o outro olho nas mochilas por
causa de eventuais gatunos, óbvio, (aproveitando o campo semântico analógico) e
aí ficava faltando um terceiro olho pras ninfas que sempre trazem um pouco de
graça a esses locais. Findo o lanche, um aplicativo pop para o Aeroporto
Internacional JK a 15 minutos de distância.
***
Durante o retorno,
Salamano relembrava pequenas estórias, estórias ocorridas na sua infância, na
quase adolescência. Certa vez ele e o Mersault, que cresceram juntos como irmãos
siameses, decidiram assistir um filme e assim fizeram, Mersault no guichê:
--- Quanto é o ingresso?
Atendente:
--- 1 real.
Mersault ;
--- Eu tenho carteirinha de estudante.
Atendente:
--- Sei, meu filho, mas já cobramos aqui
um preço promocional, simbólico, por isso o preço é único, 1 real.
Mersault, como num mantra:
--- mas eu tenho carteirinha de estudante.
A atendente diz então:
--- Espere alguns minutos, vou falar com
meu chefe.
Passados alguns minutos ela retorna:
--- tudo bem, você vai pagar só a metade.
Então Mersault mete a mão no bolso da
calça. saca 5 reais e entrega à atendente. Durante todo esse tempo, Salamano, que
permanecera de pé ao lado dele, em silêncio, começa a entender...
***
De outra feita, na época jogavam basquete
num dos clubes tradicionais da capital, o treinador resolve fazer um "sorteio", dar uns pares de tênis aos menos "favorecidos" do time,
e aí reúne todos na quadra e, de modo teatral, anuncia os 5
"sorteados", cartas marcadas, uma vez que de desfavorecidos não tinham
nada. Então pergunta, pra legitimar a coisa:
--- Alguém contra?
Silêncio total, apesar da perplexidade do
sorteio. Então uma mãozinha se ergue. Todos olham. O treinador, surpreso, diz:
--- Pode falar, Mersault.
E este desfia um discurso contrário a
escolha dos sorteados pois estes não precisavam, havia gente ali mais pobre..., e
assim por diante. Poderíamos dizer que uma pequena semente do Socialismo caíra
no solo fértil daquele pequeno quintal. O treinador ouviu tudo aquilo a
contragosto. Mas não mudou de ideia, dando o caso por encerrado.
Salamano que se afastara um pouco, constrangido, não sabia ainda que tudo
aquilo era apenas o começo.